sexta-feira, 31 de maio de 2013

Ói Nóis Aqui Traveiz e o seu Amargo Santo da Purificação


Em um final de tarde escaldante do dia 16 de dezembro de 2012, a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz apresentou o espetáculo O Amargo Santo da Purificação no largo do Mercado Público, ao lado da Prefeitura de Pelotas. Essa não foi a primeira vez que o espetáculo esteve na cidade, nem tão pouco a primeira vez que eu o assisti. No entanto, essa foi a oportunidade em que pude ficar mais próximo dos atores, já que anteriormente havia assistido a peça de longe, no centro da cidade de São Paulo.

O espetáculo é uma criação coletiva do grupo porto alegrense e tem no elenco os atuadores Paulo Flores, Tânia Farias, Pedro Kinast De Camillis, Clélio Cardoso, Marta Haas, Edgar Alves, Roberto Corbo, Sandra Steil, Paula Carvalho, Eugênio Barbosa, Lucio Hallal, Paula Lages, Déia Alencar, Alex Pantera, Karina Sieben, Jorje Gil, Aline Ferraz, Eduardo Cardoso, Raquel Zepka, Caroline Vetori, Anelise Vargas, Letícia Virtuoso, Renan Leandro, Alessandro Müller e Jeferson Cabral. Elogiar o exímio cuidado em todos os detalhes que compreendem as encenações do Ói Nóis Aqui Traveiz é uma redundância. Mas, não devemos deixar de tecer tais comentários, uma vez que este não é apenas um dos melhores grupos de teatro do nosso país. O Ói Nóis é um dos mais importantes grupos de teatro do mundo, reconhecido internacionalmente pela qualidade artística dos seus trabalhos, assim como do seu forte engajamento político.

      O Ói Nóis desenvolve uma série de atividades culturais na cidade de Porto Alegre, levando a sua proposta pedagógica que alia a formação crítica e política dos indivíduos com o que há de melhor na instrumentalização artística no nosso país. Não bastasse isso, como esse grupo é formado, antes de tudo, por artistas, o seu foco está sempre na arte. Nesse caso, no teatro. Não apenas no aprofundamento teórico, mas na sua experimentação e criação prática com montagens teatrais de extrema qualidade.

     Em O Amargo Santo da Purificação, com dramaturgia construída coletivamente pela tribo a partir dos poemas de Carlos Marighella, a tribo conta a história de um herói popular que os setores dominantes do nosso país tentaram banir durante o período de ditadura. A temática pode parecer forte demais para um espetáculo de rua. Mas, é justamente a seriedade e a ética com o que o grupo trata desta temática que faz com que a peça prenda a atenção dos espectadores em plena rua.

    Uma obra de arte no nível dos maiores artistas de todos os tempos, assim podemos definir esse espetáculo. Pode parecer exagero para alguns. Entretanto, creio que aqueles que tiveram o prazer de assisti-los comungam da mesma opinião.

   A identidade visual que o grupo traz aos figurinos, maquiagem, elementos de cena, bonecos, assim como nas enormes estruturas que surgem na nossa frente, são fantásticos. Há uma unidade estética naquilo que é construído, apesar de observarmos uma infinidade de referenciais que levaram o grupo a escolha dos mínimos detalhes. Essa sofisticação criativa eleva o trabalho do grupo a um nível de excelência, mas acima de tudo, reflete o quanto eles respeitam e valorizam os seus espectadores.

O trabalho físico dos atores é evidente e resultante de um árduo empenho e dedicação na pesquisa de uma linguagem teatral pautada nos subsídios que seus corpos podem oferecer. O resultado disso, são corpos vivos, dilatados em cena, sem exageros, sem parecerem um bando de loucos gritando e pulando, como muitos pretendentes a atores incorrem no erro de achar que os gritos, respirações arfantes e excessiva movimentação cênica têm a ver com os princípios do teatro físico e da antropologia teatral. No caso do elenco do Ói Nóis, vemos um grupo coeso, coerente com a proposta, éticos na postura como encaram o fazer teatral e, acima de tudo, atletas afetivos, conforme Antonin Artaud tanto falou em seus textos.

O espetáculo começa com dois grupos de atores, vindos de locais em posições antagônicas, como se fossem um cortejo. O impacto visual de tais cenas é impressionante. A beleza destas cenas chama atenção de longe. Além disso, conseguimos ouvir as músicas que são muito bem cantadas durante todo o trajeto.

Sobre isso, gostaria de fazer um comentário à parte, pois a técnica vocal dos atores é impressionante. Fazer teatro de rua requer uma técnica vocal apuradíssima. Nesse sentido, congratulo o grupo pelo seu trabalho, pois podíamos ouvir perfeitamente todas as falas do espetáculo, cada palavra, o sentido e o sub texto de cada uma delas, independentemente do local onde estivéssemos. Isso tudo com a interferência dos ruídos naturais da rua.

O espetáculo é muito forte e ao mesmo tempo extremamente lírico. O elenco consegue abordar uma temática tão cruel, mostrando toda a sua face terrível, do mesmo modo que consegue aliar essas situações com momentos de tamanha doçura e delicadeza.

Não posso deixar de comentar sobre o trabalho do grande atuador Paulo Flores. Embora o elenco do espetáculo seja muito parelho, Paulo consegue humildemente se destacar. Escrevo “humildemente”, pois quem o conhece sabe que essa é uma das suas maiores qualidades. Paulo Flores tem uma técnica vocal invejável. Eu conseguia ouvir o retorno da sua voz vindo de distâncias muito grandes perto do calçadão de Pelotas. Além disso, a sua entrega ao personagem é algo admirável. Paulo Flores é um daqueles atores que merecem todo o respeito do mundo, não apenas pela sua história no teatro, seus inúmeros prêmios, mas acima de tudo, pela intensidade e beleza com que trata seus personagens. Qualidades estas que apenas os grandes detêm!

A cidade de Pelotas já pode tê-lo aqui, no final da década de 1990, dirigindo o espetáculo de teatro Um Homem é Um Homem, de Bertolt Brecht, que foi um sucesso de público e crítica em todo o estado durante aquele período. Mas, acima de tudo, a grande contribuição que Paulo Flores trouxe à cidade, foram as muitas sementes que ele plantou por aqui e que hoje rendem belos frutos pelo mundo à fora.

Também me sinto na obrigação de destacar o trabalho da grande atuadora Tânia Farias. Uma mulher de teatro que batalha para o fomento da visão crítica e política dos indivíduos na sociedade por meio dos projetos sociais que o Ói Nóis desenvolve. Como se não bastasse isso, Tânia é uma das atrizes mais premiadas do Brasil. O seu trabalho cênico é avassalador. A sua leveza, aliada a uma força impressionante, cativam e conquistam qualquer plateia que fica admirada com o tamanho dessa pequena grande atriz. Assistir Tânia em cena é sempre uma aula para qualquer ator e, por esse motivo, recomendo que assistam muito ao trabalho não só dela, mas de todo o grupo Ói Nóis Aqui Traveiz.

Ao término do espetáculo me dou conta de que estou em plena rua e que as lágrimas rolam pela minha face. Mas, também percebo que não sou o único. Muitas pessoas estavam chorando muito, quando o grupo canta a última canção do espetáculo, enquanto distribuem origamis à plateia e alguns nomes de desaparecidos políticos são lançados ao ar, como uma chuva de papel picado. Enquanto eu assimilava tudo aquilo que havia presenciado, me dava conta da qualidade do trabalho desses artistas ao conseguirem, mesmo na rua, nos fazerem esquecer de tudo e entrarmos totalmente na história que estava sendo contada.

O Ói Nóis Aqui Traveis é um patrimônio nacional e, como tal, devemos sempre voltar, cuidar e apreciá-lo! Tenho certeza que essa não foi a última vez que essa tribo de atuadores visitou a cidade de Pelotas. Por hora, nos resta esperar pelos próximos espetáculos com que eles venham a nos brindar.

Vagner Vargas
Ator – DRT:6606
Crítico de teatro

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