domingo, 3 de novembro de 2013

De Tanto Esmurrar a Faca, Cortou a Relação com o Espectador



     O período de ditadura militar, vivido no Brasil durante boa parte do século XX, continua sendo tabu e dificilmente é levado como temática aos palcos dos teatros, assim como às telas dos cinemas brasileiros. De maneira semelhante também observamos a discreta produção literária que consegue liberdade, ainda nos dias de hoje, para desvelar os horrores a que a comunidade civil foi sujeitada durante a dominação militar em nosso país.

     A importância dos debates sobre essa parte da nossa história, assim como a relevância desse contexto trazido aos nossos palcos é inquestionável. Entretanto, não é porque se trata de um assunto com fortes implicações históricas que toda abordagem consiga tocar o espectador contemporâneo. Apesar do texto Murro em Ponta de Faca, de Augusto Boal, ser datado, o seu conteúdo e a força da sua mensagem, assim como a dor dos sentimentos de quem é obrigado a se exilar de sua pátria, não perderiam o caráter de empatia com os espectadores, se recebesse uma montagem versátil aos espaços cênicos e mais comprometida com as estéticas teatrais, do que com os clichês televisivos.

     Iniciar qualquer crítica a um texto de Augusto Boal não é uma tarefa fácil, dado o valor histórico, teórico e literário desse artista que propôs uma maneira diferenciada de utilizarmos o teatro como adjuvante à compreensão dos papeis sociais e políticos dos indivíduos muitas vezes apartados dos seus direitos em sociedade. Alguns o tomam por Deus, outros o encaram como um ente intocável e jamais passível de críticas, sejam elas quais forem, antes mesmo de serem geradas. Entretanto, para o início de quaisquer abordagens, devemos sempre compreender que as propostas teatrais de quaisquer grandes nomes da nossa arte, recebem uma forte datação dos seus contextos sócio, histórico, filosófico, político, cultural, econômico e geográfico onde estão inseridos. Isso, de maneira alguma, invalida as contribuições teórico-reflexivas de qualquer um dos “grandes mestres”. Todavia, não podemos incorrer na leviandade e limitação de enclausurarmos as propostas destes grandes pensadores em normativas e regras que devam ser utilizadas e reproduzidas tal e qual os seus criadores o fizeram no período histórico em que estavam vivendo suas inovações artísticas.

     O valor e a qualidade das contribuições dos “grandes mestres”, às vezes, causam um certo temor em algumas pessoas mais despreparadas e desprovidas de repertório argumentativo para poderem questionar e desgostar da maneira como algumas obras são adaptadas e levadas aos palcos contemporâneos. Talvez, esse seja um dos motivos que os levem a aplaudirem em pé a qualquer coisa que assistem e saírem dizendo que realmente gostaram do que viram. Muitas vezes é mais fácil dizer que um espetáculo estava bem montado, do que saber argumentar sobre os defeitos e fragilidades de tal montagem.

     Toda essa introdução foi feita para que eu inicie a falar sobre a peça Murro em Ponta de Faca, de Augusto Boal, apresentada em 01 de novembro de 2013, no Theatro Guarany, em Pelotas. O espetáculo com direção de Paulo José, assistência de direção, de Roberto Souza, contava com o elenco formado por Gabriel Gorosito, Laura Haddad, Nena Inoue, Abilio Ramos, Sidy Correa, Erica Migon e Raquel Rizzo.

     A peça conta a história de 3 casais brasileiros durante o período de ditadura militar no Brasil. A narrativa se desenrola, mostrando como pano de fundo inclusive os conflitos políticos dos países por onde aqueles casais são obrigados a fugir. O contexto histórico deste período no Chile, Argentina e França, por exemplo, também ajudam a tecer o universo dessas personagens. A dramaturgia de Augusto Boal é muito bem composta. O autor sabe como destacar pequenos momentos onde expõe os sentimentos e conflitos de quem é obrigado a fugir do seu país, apenas por discordar das políticas que estão sendo adotadas naquele período, ou neste caso, sendo outorgadas à população. Além disso, Boal também intercala muito bem os momentos mais dramáticos, com conflitos sobre relações entre casais e algumas situações cômicas que o ser humano jamais abandona, mesmo em momentos em que vivencia o horror.

     Apesar da datação histórica, o texto permanece atual no que se refere aos conflitos dos seres humanos, as buscas por identidade, liberdade e felicidade. Porém, os resultados positivos desse texto apenas podem ser percebidos dentro de sua completude, quando recebem uma montagem teatral a sua altura. O que não foi o caso.

     A direção de Paulo José não é ruim. O diretor sabe dispor bem os elementos e as marcações cênicas, explorando muito bem todo o espaço do palco. Porém, devido às marcações de cena, acredito que esse espetáculo tenha sido concebido para teatros pequenos, ou espaços cênicos menores, onde o público possa ficar disposto ao redor dos atores. O direcionamento dos diálogos e das marcações para sentidos que ignoravam a frontalidade da plateia não transpareciam uma opção estética, pareciam mais um equívoco na adaptação dessa apresentação para um teatro com as dimensões e características do Guarany.

     Falando no teatro, ao ver as torres de iluminação em estrutura de torres em cubo em cima do palco, limitando as possibilidades de iluminação, refleti sobre a necessidade de que os proprietários dessa casa de espetáculos façam uma campanha para angariarem fundos para a construção de um urdimento com qualidade digna à apresentação de quaisquer espetáculos em nossa cidade. No entanto, isso não foi motivo para a iluminação concebida por Beto Bruel  e operação de Victor Sabbag comprometer o espetáculo. O iluminador soube retirar os melhores resultados possíveis dentro da estrutura de que dispunha. Porém, acredito que, com um urdimento adequado, a iluminação poderia dispor de maiores possibilidades.

     Os figurinos concebidos por Rô Nascimento, com assistência de Sabrina Magalhães, compunham uma identidade visual adequada ao período histórico por onde a história da peça transitava, conseguindo imprimir as características de cada personagem, valorizando-as e possibilitando a composição do todo na identidade de figurinos. Os elementos de cena concebidos por Ruy Almeida são muito funcionais e ajudam a construir os diferentes desenhos de cena, agregando características de versatilidade e funcionalidade ao cenário.

     As reações da plateia me chamaram a atenção, pois ficava evidente que o público presente estava disposto ao riso e desejando o riso. Porém, esse não era o contexto do espetáculo, nem tampouco se tratava de uma comédia. Mas, os momentos em que a peça retratava situações de diferenças comportamentais entre homens e mulheres, conflitos entre casais e situações de humor, me pareciam ser os instantes em que os espectadores se sentiam mais próximos da história. Esse fato me levou a refletir sobre uma questão muito importante no teatro e que o egoísmo de alguns teóricos costumam defender como fator de pouca importância: o respeito ao público e ao caráter de entretenimento que o teatro também tem.

     Já há algumas décadas, observamos que o público brasileiro tem deixado de frequentar as salas de espetáculos, da mesma maneira que observamos uma forte corrente de teorias acadêmicas ditando o que os artistas devem conceber como propostas estéticas para o teatro. O valor das reflexões teóricas sobre a arte teatral é irrevogável. No entanto, essa peculiaridade se restringe apenas ao campo teórico daqueles que se dispõe a esse estudo. Não podemos obrigar os espectadores a disporem dos mesmos referenciais teóricos que os bancos acadêmicos sentam suas discussões. O público quer o teatro, em sua essência e, como tal, seja ele no estilo, estética ou proposta que for, uma arte que TAMBÉM permita o entretenimento de todos e não apenas de um pequeno grupo de arrogantes intelectualóides que afastam cada vez mais os espectadores das plateias dos teatros, ao imporem seus experimentalismos teóricos, como a única forma validade de produção teatral. Com isso, o público ao se sentir desprovido de repertório teórico para tais eventos – até mesmo porque não tem necessidade de buscar tais embasamentos, já que não tem obrigação de ser um pesquisador de tais teorias – acaba por se afastar das casas de espetáculos e não mais a se identificar com uma das expressões artísticas mais antigas da humanidade: o teatro.

     Enquanto eu via a vontade do público em se entregar ao riso e do quanto as discussões sobre relacionamentos geravam tanta empatia entre eles, também refleti sobre o fato de que a maneira como a peça foi concebida, carregava em si fortes referenciais e saídas fáceis tipicamente características dos clichês televisivos. Este poderia ser o motivo que aproximasse os espectadores desses raros momentos do espetáculo, pois, como o público em geral tem abandonado o hábito de frequentar os teatros, a televisão se tornou o meio pelo qual o público de massa obtém todos os seus referenciais estéticos.  Como, tanto o estilo de atuação, quanto algumas situações da peça eram extremamente parecidos à estética clichê das telenovelas e programas de “humor” da TV brasileira, acredito que o público reconhecia nesses momentos aquilo que está acostumado a assistir diariamente quando ligam os aparelhos de televisão em suas casas. Após esses raros momentos, o público parecia que ficava se perguntando sobre o que estava acontecendo no espetáculo, já que a peça não saía do palco.

     A maneira como as marcações cênicas estavam dispostas acabou tornando o espetáculo hermético, o público queria se sentir incluído naquilo que estava sendo contado. Isso era perceptível a cada vez que lhes era permitido esse tipo de relação e, também, quando conseguiam enxergar as reações dos atores, assim como ouvirem o que estavam dizendo. Só que o espetáculo parecia tão ensimesmado que passava a ideia de que o público estava exilado de sua participação na criação do evento teatral.

     O grande problema dos atores ficarem muito tempo apresentando espetáculos em teatros pequenos ou da concepção ser criada com o intuito de ocupar espaços mais intimistas, é que, quando a montagem é levada a um teatro com dimensões operísticas, os atores se esquecem de adaptar as técnicas de interpretação, assim como a técnica vocal para que toda a plateia possa ver, perceber e ouvir as histórias que lhes estão sendo contadas. Nessa apresentação, os atores não conseguiram fazer uso do seu aparelho vocal de maneira eficiente para atender às necessidades de um teatro com as dimensões do Guarany.

     Quem já se apresentou nesse teatro, sabe que sua acústica demanda uma técnica vocal com os resultados que os cantores de ópera conseguem, quando ali se apresentam. A preparação vocal de Célio Rentroya e Babaya deveria ter trabalhado esse tipo de particularidade com o elenco do espetáculo. Uma grande parte de toda a história da peça simplesmente não foi ouvida por quem estava da metade para o final da plateia. O texto de Augusto Boal é muito profundo. Porém, perdeu sua força a partir do momento em que o público não conseguia escutá-lo.

     Se o elenco não dispõe de técnica vocal para enfrentar uma plateia com as dimensões e características acústicas do Theatro Guarany - até mesmo porque nenhum ator é obrigado a ter formação neste tipo de técnica - cabe ao grupo optar pela utilização de todo o arsenal tecnológico de que dispomos nos dias de hoje. Não podemos negar a tecnologia em pleno século XXI. Seria muita burrice alguém referir que os atores não podem usar microfones de lapela nos dias de hoje. A tecnologia surgiu para nos facilitar certas coisas e, nesse caso, até mesmo para auxiliar que o texto dos espetáculos possa ser ouvido por todos os espectadores nos teatros. Um ator não é melhor que outro apenas pelo fato de não usar microfones ao se apresentar. Nem tampouco um ator é mais competente ou talentoso porque dispõe de um aparelho vocal que o permite ser ouvido em quaisquer espaços. Isso apenas significa que ou ele teve uma ótima formação técnico-vocal ou que é um favorecido anatomo e fisiologicamente falando. O elenco de Murro em Ponta de Faca deveria ter utilizado microfones durante a apresentação para que o público ali presente pudesse, ao menos, ter ouvido a história.

     Falando em Augusto Boal, em um certo momento do espetáculo, há uma quebra na história para os atores proporem um diálogo mais próximo com os espectadores e ilustrarem a percepção de um distanciamento entre atores e personagens. Entretanto, dada a opção de técnica de atuação do elenco ser tão arraigada nos referenciais televisivos, esse momento perdeu a sua força. Talvez, a opção de estilo de atuação do elenco funcione melhor em teatros mais intimistas, onde o público possa enxergá-los mais de perto e observar as nuances de suas expressões. Mesmo assim, o forte diálogo estilístico com a linguagem televisiva fazia com que o universo interior das personagens perdesse a sua força, sobretudo em um teatro do tipo italiano e com as dimensões operísticas do Guarany.

     Outro aspecto que gostaria de destacar, se refere à maneira como Boal consegue construir um conflito externo às cenas com uma intensidade dramática e tensão muito fortes. Entretanto, toda essa tensão e intensidades não eram vistas em cena. Os atores não conseguiam transparecer em suas atuações que existia um conflito externo ao palco que estava afetando à vida de muitas pessoas, inclusive a de seus personagens. Talvez, esse detalhe tenha passado em branco pela direção, ao deixar os corpos dos seus atores tão relaxados em cena e suas interpretações tão intimistas.

     No que se refere ao elenco, não posso deixar de destacar a atriz Raquel Rizzo pelo seu excesso de over acting. A expressão over acting já carrega em si o conteúdo de exagero e equívoco. Mas, essa atriz exagerou na dose. Em vários momentos tentava chamar a atenção para si, exagerando além da conta nas reações e perdendo o timing. Isso pode até funcionar em programas televisivos de “humor” com gosto duvidoso, mas, no teatro, beira à canastrice e à provocação do riso fácil. Nenhuma das personagens escritas por Boal era rasa. Mas, às vezes, equívocos na construção das personagens ou falta de uma mão firme do diretor para controlar os ímpetos do elenco, acabam transformando algumas personagens em algo muito menor do que o dramaturgo compôs, quando as criou.

     A temática da ditadura militar que o Brasil viveu durante o século XX jamais deve ser esquecida e precisa ser levada aos palcos com maior frequência. Entretanto, qualquer montagem teatral, abordando o assunto que for, jamais deve esquecer de se dispor ao diálogo com a plateia, para que o espetáculo não fique hermético. Além disso, os atores têm a obrigação de saberem adaptar suas técnicas para qualquer espaço onde venham a se apresentar e cabe ao diretor saber chamar a atenção dos atores para esse fato.

     Portanto, apesar do valor histórico da peça Murro em Ponta de Faca, o que vimos não saiu do palco, não chegou no espectador e ficou muito aquém da obra de Augusto Boal. Porém, fica aqui o registro de um bom exemplo de situações técnicas que podem ocorrer quando um espetáculo se apresenta em diferentes tipos de espaços teatrais e que jamais devem ser esquecidas pelos grupos e companhias de teatro ao saírem em turnês com os seus trabalhos.

Vagner Vargas
Ator – DRT: 6606

Crítico de Teatro

Estreando com a Qualidade e o Toque Impecável de Quem tem Mais de 50 Anos nos Palcos dos Teatros Brasileiros



     No dia 25 de outubro de 2013, estreou mais um espetáculo do experiente e consagrado Valter Sobreiro Jr. Com uma carreira de mais de 50 anos trabalhando como encenador, dramaturgo, iluminador, cenógrafo e demais atividades que compõem a construção de espetáculos de artes cênicas, Valter nos presenteia com Pai-de-Deus, uma peça de teatro esteticamente diferente de alguns dos seus renomados sucessos.

     Não vou me ater ao padrão de qualidade dos espetáculos de Valter Sobreiro Jr., pois já o fiz em outra crítica publicada aqui neste blog http://criticasparateatro.blogspot.com.br/2013/05/mais-um-excelente-trabalho-de-valter.html. Este diretor, que esteve à frente do Grupo Teatro Escola de Pelotas (TEP) por mais de 20 anos, recebendo dezenas de prêmios em todo o país com as suas peças, agora, com o Grupo Entremez de Teatro, inaugura uma nova fase de produções e repertórios de espetáculos para circularem em território nacional e internacional, como nos trabalhos junto ao Teatro Escola de Pelotas. O TEP alcançou reconhecimento não apenas nos palcos brasileiros, mas também nos países vizinhos. Porém, o destaque na mídia local somente surgiu quando o grupo foi aclamado pelo público e crítica do eixo Rio-São Paulo e do exterior.

     Faço aqui essa referência, pois na mesma noite de estreia da peça Pai-de-Deus, houve o lançamento do livro “O que pode o tempo – Maragato e a consagração de Sobreiro”, escrito por Helena Zanela Prates. Neste livro, a autora faz uma abordagem interessante sobre a maneira como a mídia trata as produções de teatro locais. Além disso, Helena também cumpre um importante papel ao registrar uma parte da história do teatro gaúcho, ao abordar o sucesso da peça “Maragato”, de Valter Sobreiro Jr., levada aos palcos pelo TEP.

     Em Pai-de-Deus, observamos uma história desenvolvida em duas grandes cenas, diferentes entre si, porém, interligadas pela sua essência. Não há uma explicação óbvia para as situações que são apresentadas. O espectador acaba se envolvendo com o universo dos personagens e, aí, compreendendo que todas as histórias são atravessadas por diferentes e complexos contextos e que a visão unilateral dos fatos nos impede de observar os indivíduos dentro de sua complexidade.

     Como em um pas-de-deux, os atores Sérgio Peres e Bernardo Pawlak jogam em cena em uma ótima sintonia. Essa sintonia entre os atores não deixa transparecer as diferenças entre o experiente Sérgio Peres - e seus muitos anos vivendo diferentes personagens nos palcos - e o jovem talentoso Bernardo Pawlak. Ambos os atores estão muito bem, um colaborando com o outro em cena para que o público consiga ser envolvido pela complexidade dos seus personagens.

     O espetáculo foi apresentado na Fábrica Cultural, um espaço novo que começa a se fortalecer no cenário das artes cênicas como uma opção à falta de casas de espetáculo para peças de teatro que não se direcionam às grandes plateias. Além disso, a estrutura do local deve ser elogiada e indicada para futuras apresentações em nossa cidade, pois apresenta um espaço versátil e que pode funcionar como uma excelente opção aos espetáculos que desejam um contato mais íntimo com os espectadores.

     Valter soube tirar o melhor proveito do espaço cênico. Ao colocar o público disposto em cadeiras no palco e os atores no espaço que seria tradicionalmente reservado à plateia, o diretor além de nos propor à reflexão do valor que devemos dar aos nossos espectadores, nos coloca em uma perspectiva que permite avaliar a história como se estivéssemos entrando no interior dos seus acontecimentos.

     Esse tipo de opção estética requer dos atores uma técnica de interpretação que deveria beirar o hiper realismo, dada à proximidade com o espectador e os conflitos dos personagens. Talvez, esse quesito ainda necessite ser ajustado nas opções de estilo de atuação dos atores. Mas, é só uma questão de ajustes, já que ambos têm talento e competência suficientes para obterem resultados cênicos ainda melhores. Essa questão que destaco aqui é muito interessante, pois, geralmente, os atores só conseguem ter a real dimensão do seu trabalho quando as peças saem das salas de ensaio e vão ao encontro dos espectadores para que o evento teatral possa acontecer. Comumente os artistas de teatro costumam dizer que as estreias são momentos de nascimentos das suas peças de teatro e, como tais, os trabalhos e ajustes mais específicos iniciam a partir desse dia.

     A concepção de figurinos, maquiagem e cenário enxutos criaram uma identidade visual ao espetáculo bastante limpa e funcional. Além disso, dada a maneira enxuta como foi concebida, possibilitará ao grupo uma boa versatilidade para apresentarem esse trabalho em diferentes espaços. A direção de palco de Roberta Rangel completa a ficha técnica do grupo.

     Portanto, nascimentos e estréias são sempre bem vindos e, nesse dia, pudemos observar o nascimento de Pai-de-Deus e o belo futuro que ainda tem pela frente. Assim como em todos os seus trabalhos, Valter assina aqui mais exemplo do seu padrão de qualidade e que merece ser assistido por todos.

Vagner Vargas
Ator – DRT: 6606

Crítico de Teatro

Teatro Ironizando a Academia



     Aqueles que já percorreram os bancos acadêmicos, seja na graduação ou durante a pós-graduação, conhecem certos estereótipos de comportamento que algumas pessoas adotam para serem respeitadas, quando a sua competência profissional não sustenta tal reconhecimento. Apesar de, no Brasil, as universidades serem responsáveis pela maior parte das pesquisas realizadas no país, muitas vezes, a exigência do volume de produção de estudos acaba superando a importância do conteúdo do que está sendo analisado, as metodologias adotadas e a propriedade no discurso de quem profere tais análises.

     Estes foram apenas alguns aspectos abordados durante o espetáculo “V ao Cubo”, apresentado no dia 29 de setembro de 2013, na Bibliotheca Pública Pelotense. A dramaturgia composta pelo grupo porto alegrense também ironizou os exageros na utilização de recursos áudio visuais nas salas de aula, seminários e palestras. Por diversas vezes, o grupo deslocava o data show, deixando as projeções fora dos padrões e formalidades acadêmicas, além de excessivamente tentarem ilustrar aquilo que estavam dizendo. Fatos estes comumente ocorridos durante algumas palestras e aulas nas universidades, quando palestrantes se utilizam de vocabulário bastante vasto para dizerem e repetirem as mesmas situações que as próprias imagens já esclareceriam por si só, pois não conseguem dispor de uma significação reflexiva mais profunda para expandirem o debate das temáticas ali abordadas. Por mais ridícula e exagerada que a cena teatral exponha esses fatos, eles não são uma raridade nos círculos “intelectuais”, quando o que menos importa é o conteúdo do que se está discutindo ou, quando, para valorizar um assunto/pesquisa de competência frágil, se cria uma aura intelectual defendida por um vocabulário rebuscado, respaldado por bibliografias que o grande público não tem obrigação – nem interesse – de conhecer.

     Por mais caricatos e estereotipados que os personagens do espetáculo pudessem parecer, quem já circulou pelos bancos acadêmicos, sabe que aqueles tipos de pessoas existem e fazem com que a sua imagem intelectualóide seja respeitada mais pela afirmação de uma postura arrogante que realmente acredita na profundidade de seu discurso parco, achando ser superior ao restante da população, do que pela importância do seu trabalho para a humanidade. No que se refere ao campo das artes, os estereótipos ali retratados ainda se tornam mais comuns, quando identificamos pessoas que se utilizam de um exagero na caracterização da sua imagem pessoal para serem identificados como “diferentes” ante aos demais e, assim, serem chamados de “artistas”, já que a sua falta de competência artística não o faz por si só.

     A peça parte de uma ironia em cima de uma pesquisa acadêmica para identificar os motivos pelos quais estava faltando papel higiênico nos banheiros da universidade. Para tanto, alguns doutores propõem uma série de estudos e teorias sobre as muitas possibilidades para tais fatos. Com um argumento metafórico bastante debochado, o grupo compara a realização de alguns estudos acadêmicos, assim como o que esses pesquisadores consideram como conhecimento legitimado pela intelectualidade, àquilo que fazemos dentro dos banheiros e que costuma sair pelos ralos. As comparações que faço aqui não são gratuitas, pois estão presentes ao longo de todas as palestras e seminários apresentados pelos personagens. A grande crítica fica em torno da banalidade do assunto de algumas pesquisas para as quais o governo investe altas cifras e permite a utilização da carga horária de muitos pesquisadores para assuntos defasados ou redundantes por si só.

     O desenvolvimento da história se apresenta ironicamente mais crítico àqueles que já presenciaram situações onde os “pesquisadores” se respaldam em diversas referenciações baseadas em teóricos da filosofia, geralmente os citando a esmo, sem nem ao menos significarem o real direcionamento dos conceitos daquele filósofo. Como a grande maioria do público que assiste a essas palestras, seminários ou eventos não costuma ler os referenciais que são citados pelos palestrantes, nem sabe se o que está sendo dito faz sentido ou se está de acordo com os princípios propostos pelo seu autor. Então, acaba que a postura “intelectual”, o vocabulário rebuscado e a imagem construída de “profissional competente” acabam sendo mais importantes do que o conteúdo do seu trabalho.

     A peça dirigida por Natália Soldera, tem no elenco Ander Belotto, Jéssica Lusia, Leonardo Silveira, Matheus Melchionna e Silvana Rodrigues. Mesmo com uma proposta tão irônica, o espetáculo, enquanto encenação, é fraco. Um dos motivos que podemos atribuir a esse fato se deve à especificidade das temáticas abordadas, pois somente quem já presenciou aquelas situações acadêmicas, sabe o quanto a peça está debochando dos comportamentos estereotipados da academia. Obviamente que, o público em geral, mesmo sem ter frequentado esses eventos universitários, pode se divertir com as situações. Mas, daí, eu particularmente, não sei se conseguem compreender a amplitude do que está sendo ironizado. Refiro isso, pois a proposta do espetáculo pode tê-lo deixado hermético ao assumir tamanha especificidade crítica.

     Além disso, apesar do grupo ter aproveitado bem o espaço e a estrutura de que dispunham no salão da Bibliotheca Pública Pelotense, os elementos da encenação, tais como figurinos, cenário, iluminação, maquiagem e trilha sonora foram deixados em segundo plano, quando comparamos ao conteúdo irônico do texto. Paradoxalmente, o grupo ao criticar os discursos acadêmicos, acabou criando um espetáculo bem nos moldes conceituais dos cursos universitários de teatro, onde o experimentalismo está mais direcionado ao exercício dos conceitos abordados nas salas de aula das universidades, do que às propostas artísticas que são levadas ao mercado teatral para o público em geral.

     O grupo é bastante jovem e, provavelmente, todo formado por estudantes universitários de teatro. Esse fato ilustra bem algumas escolhas estilísticas de interpretação que são próprias da inexperiência no mercado teatral. No entanto, é sempre revigorante assistir a jovens atores em busca da comunicação com os espectadores de maneira eficiente e correndo atrás da verossimilhança cênica que apenas a carreira artística – longe dos conceitos acadêmicos - e o exercício diário nos palcos os ensinarão.

     Portanto, para terminar esse texto, gostaria, ainda, de ressaltar outro aspecto paradoxal presente nesse espetáculo: a inexperiência do grupo e a coragem em olharem para a estrutura onde buscam sua formação acadêmica e criticá-la. Mesmo sendo tão jovens, os integrantes desse grupo conseguiram ter maturidade suficiente para perceberem que a carreira artística é feita mais por vocação, preparo técnico e vivência nos palcos, do que por discursos acadêmicos ornamentados por belos vocabulários.

     Além disso, justamente por serem tão jovens, penso eu que detenham a coragem suficiente para criticarem a academia, sem temerem os imensos discursos, teses e teorias que serão gerados dentro dos muros dos templos acadêmicos com o intuito de deslegitimar as críticas que o espetáculo faz às verdades acadêmicas amplamente protegidas e estabelecidas dentro dos seus palácios. O teatro brasileiro precisa disso: artistas corajosos. Corajosos em se reconhecerem como artistas no seu ofício, sem precisarem do aval acadêmico para nada. Afinal, a academia costuma criar suas teorias sobre o teatro, baseada naquilo que observa do alto de suas torres, enquanto que os artistas trabalham na carpintaria do seu ofício diariamente em cima dos tablados.

     Claro que não podemos ser ingênuos e negar que, dada à crise do setor cultural brasileiro, com políticas que relegam aos artistas a condição de marginalizados dos investimentos governamentais, as academias acabam sendo o refúgio para alguns poucos artistas que conseguem adentrar esses templos com o intuito de adquirem a sua subsistência. Porém, como os artistas costumam ter como o seu trabalho a arte em si, dificilmente, o meio acadêmico lhe permite um espaço no seu mundo das teses e teorias. Muitas vezes, um excelente artista tem sua entrada na academia posta em detrimento à imagem pessoal “alternativa”  e do discurso “floreado” de alguns “intelectuais”.

     O que isso provoca?

     Esse fato permite que a academia mantenha seus círculos sagrados, vitalícios e hereditários de conceitos que se legitimam entre si, se afastando cada vez mais do real ofício dos artistas da cena. Com tantas teses e teorias sendo divulgadas sobre os conceitos das artes cênicas e de como devem se enquadrar nesses conceitos, o público acaba se sentindo burro e não pertencente aos espaços artísticos. O que observamos com isso? Plateias cada vez mais vazias.

     Desse modo, finalizo aqui re-afirmando que a crítica proposta pelo espetáculo “V ao Cubo” vai muito além de um deboche sobre as aulas universitárias. As reflexões que podemos tirar dali, servem, inclusive, para pensarmos sobre o que estamos deixando fazer com as artes cênicas como um todo em nosso país.

Vagner Vargas
Ator – DRT: 6606

Crítico de Teatro

A Cena não Foi Abençoada



     No dia 23 de julho de 2013, foi apresentado, no Theatro Guarany, o espetáculo  Landel de Moura – O Incrível Padre Inventor, uma produção da Cia Teatral Face & Carretos, de Porto Alegre, dirigida por Camilo de Lélis. O público presente pode conhecer um pouco da história de um importante inventor brasileiro, desconhecido pela população em geral.

     O padre Landel de Moura viveu na virada do século XIX, para o século XX, em Porto Alegre. Um de seus inventos mais conhecidos foi um aparelho capaz de transportar a voz das pessoas a longas distâncias e permitir que elas pudessem se comunicar por meio de ondas eletromagnéticas, mesmo estando longe umas das outras. O padre percorreu diversos estados brasileiros e até mesmo outros países para divulgar os seus inventos e também estudar fenômenos que a ciência da época acreditava serem de impossível explicação. Obviamente que, assim como todos aqueles que estão à frente do seu tempo, Landel de Moura foi chamado de louco e o seu protótipo do que hoje conhecemos como telefone foi considerado uma fraude, algo que seria impossível de funcionar.

     A montagem da Cia Face & Carretos, com dramaturgia de Hercules Grecco faz o registro histórico desse importante e esquecido personagem da ciência nacional. Talvez, esse seja o maior predicado do espetáculo.

     Os cenários, adereços e efeitos de Alexandre Fávero conseguem compor uma unidade estética. Entretanto, alguns elementos de cena e partes do cenário são explorados em poucos momentos, sem serem realmente importantes para a construção narrativa do espetáculo. Cenários muito grandiosos, quando não estão extremamente inseridos na concepção da linha dramatúrgica, passam mais a imagem de um cenário grande, do que de um elemento importante dos acontecimentos cênicos.

     A iluminação, criada por Fernando Ochôa, teve que ser adaptada às condições estruturais do Theatro Guarany, o que, provavelmente afetou a qualidade da sua concepção. Mesmo assim, era possível perceber na dramaturgia de iluminação a existência de linhas narrativas em consonância com o texto de Grecco.

     Os figurinos de Fabrizio Rodrigues possuíam uma unidade estética. Porém, os figurinos do elenco feminino, apesar de serem muito bonitos, me pareciam um pouco sensuais demais para aquele período histórico. A beleza das atrizes do espetáculo já é ressaltada por si só, não havendo a necessidade dos figurinos pretenderem enfatizar ainda mais essa peculiaridade, pois não é o objetivo da narrativa.

     Em certo momento do espetáculo, um dos atores faz uma piada descontextualizada, trazendo uma situação atual, comumente exposta nos canais de TV. Entretanto, a piada não funcionou, perdeu o time e ficou totalmente fora de contexto, mesmo sendo uma piada propositalmente posta como um momento de quebra do espetáculo. Não há a necessidade de buscarmos o riso fácil e a obviedade no teatro. Quando houver a comicidade, ela se dará por si só, sem precisarmos “forçar a barra”. Além disso, a necessidade de se fazer uma referência televisiva nos espetáculos teatrais apenas empobrece a qualidade da linguagem teatral.

     Outro momento do espetáculo que me chamou a atenção, foi uma rápida cena de nudez, quando uma das atrizes levanta o vestido rapidamente e está nua por baixo do figurino. Não há a necessidade dramatúrgica daquela personagem mostrar a sua genitália naquele momento. O que acontece apenas reduz o texto a ser ilustrativo do que está sendo dito, passando a imagem de que o objetivo, ali, era somente mostrar a genitália da atriz, sem uma justificativa dramática para tanto. Estamos em 2013, o nu não choca mais ninguém, mas isso não justifica que ele seja descontextualizado, senão ele pode fazer com que uma cena do espetáculo perca a sua intensidade dramática, apenas porque há um desejo em expor o corpo dos atores.

     O elenco do espetáculo é composto por Leonardo Barison, Renata de Lélis, Luis Franke, Ariane Guerra, Rafael Franskowiak, Plinio Marcos Rodrigues, Wagner dos Santos e Flávio Silveira. Apesar de alguns nomes do elenco serem atores bastante experientes nos palcos gaúchos, em alguns momentos a peça perdia a sua força, parecia que os atores cansavam em certas cenas e deixavam a energia do espetáculo desabar. O ator que interpreta o protagonista do espetáculo, Leonardo Barison, não compromete em cena. Porém, ficou faltando um pouco mais de humanidade, profundidade e paixão ao personagem, já que uma pessoa com a história como a de Landel de Moura, provavelmente, carrega em si uma grandiosidade de alma que não era vista em cena.

     Renata de Lélis é uma atriz bastante conhecida dos nossos palcos e com um vasto repertório técnico. Os momentos em que ela canta em cena prendem a atenção dos espectadores. Mas, ainda sinto que a sua personagem merecia uma intensidade e profundidade maior no contexto narrativo para que Renata pudesse explorar melhor as suas qualidades cênicas. Ariane Guerra faz um ótimo contraponto a todos os atores quando está em cena. É o tipo de atriz que se propõe ao jogo e segura a cena, disfarçando até mesmo os momentos em que o espetáculo começa a se perder no marasmo e falta de energia.

     Camilo de Lélis é um importante e competente diretor de teatro. Apesar da grandiosidade da montagem desse espetáculo, acredito que o diretor poderia ter se focado mais nos seus dotes de excelente diretor de atores, do que propor uma montagem flamboyant. O espetáculo se torna monótono em alguns momentos, criando uma barriga em outros, o que poderia justificar muitos e eficientes cortes no texto e até, quem sabe, de cenas inteiras, para que o espetáculo ganhasse um pouco mais de ritmo e não ficasse tão enfadonho de se assistir.

     Até me sinto duro demais ao fazer essa crítica ao trabalho de Camilo de Lélis, tendo em vista o respeito e admiração que eu tenho ao seu trabalho. No entanto, justamente por conhecer outros espetáculos onde esse diretor focou a sua atenção à qualidade da direção de atores, chamo a atenção para esse fato, pois gostaria de voltar a ver essa qualidade nas suas peças novamente.

     Portanto, apesar da importância histórica do padre Landel de Moura, acredito que o espetáculo deixou a desejar a partir do momento em que se perdeu no ritmo com que a narrativa foi desenrolada. Mesmo assim, deixo aqui o registro das congratulações a essa companhia por ter ressuscitado a história de um personagem pouco lembrado pelos livros de história.

Vagner Vargas
Ator – DRT: 6606

Crítico de Teatro

A Catwalk for a Performance



     A sinestesia costuma ser o mote de alguns espetáculos e performances em teatro que se preocupam mais com o estímulo, despertar e desvelar de sentimentos e emoções nos espectadores, do que com a apresentação de uma narrativa que apresente uma história. Entretanto, dada à especificidade estética e conceitual destas propostas, elas costumam ser apreciadas apenas por um seleto grupo de pessoas que dispõem de repertório capaz de compreendê-las dentro de sua própria linguagem e dos hibridismos que as atravessam, borram e intercomunicam.

     Esse é  caso de Liquidação, uma performance teatral com direção de Maurício Casiraghi que propõe uma diversidade de sensações, por meio de experimentações de diálogos entre os diversos atravessamentos de linguagens artísticas, característicos do teatro contemporâneo. O espetáculo se desenvolve com o ritmo de um desfile de prêt-à-porter, mostrando diversas composições resultantes de um processo de concepção elaborado com toda a disposição e ousadia de jovens artistas que se propõem à experimentação cênica como processo de compreensão de suas sensibilidades enquanto artistas em formação e, ao mesmo tempo, o fazem jogando essa busca para o diálogo com a plateia. A comparação com o refinamento dos desfiles de prêt-à-porter não é feita ao acaso, pois ao se jogarem à experimentação, os artistas ali expostos portam não somente a instigação de sinestesia para a plateia, eles portam para si mesmos a busca pela compreensão do que virão a sentir como artistas da cena.

     O elenco formado por Diego Nardi, Gabriela Chultz, Genises Azevedo e Talyta da Rosa não constroi personagens, nem se insere em uma narrativa literária. O grupo experimenta diversos recursos em cena. O diálogo com projeções, filmagens, exposição de imagens e utilização de técnicas de vídeo com Chroma key além de propor um diálogo não linear da cena com os espectadores, intensifica algumas reflexões sobre o valor que damos às imagens, ao corpo e do quanto a mídia pode colocar e manipular qualquer aspecto, expondo-o em uma banca de liquidação, reduzindo seu valor e importância para que sejam vendidos e consumidos a qualquer preço.

     A iluminação de Lucca Simas é outro elemento que se propõe à experimentação de como compor a cena e como se relacionar com o contexto cênico e os espectadores na busca de desvendar os mecanismos que levam a iluminação a desenvolver um processo de dramaturgia da iluminação cênica. O espaço da Bibliotheca Pública Pelotense funcionou muito bem para a proposta do grupo, pois além de propiciar que os espectadores fiquem bastante próximos da encenação, possibilitava que o grupo experimentasse suas pesquisas cênicas de caráter contemporâneo dentro de um prédio histórico, construído no século XIX.

     Obviamente que esse espetáculo faz parte de uma proposta surgida nos bancos acadêmicos por jovens artistas em formação. Esse fato talvez ressalte uma ânsia de todos os criadores ali envolvidos em romperem com os conceitos engessados pelas mentes teóricas da academia e se proporem ali, ao longo dessa experimentação, a descobrirem como se dá o processo artístico longe dos livros e quando em contato com o público. O fato de ser um trabalho experimental reduz a amplitude de abrangência de público para esse espetáculo, assim como para as suas possibilidades comerciais e de empatia com os espectadores em geral.

     Mesmo assim, considero ser muito importante que os artistas possam ter esses momentos em que se jogam à busca pela pesquisa sinestésica para se compreenderem dentro de sua arte e, assim, poderem desenvolver futuros projetos onde o público também esteja incluído nos objetivos do prazer que a obra artística desenvolverá quando levada aos palcos. No entanto, o grande desafio para os artistas aqui não reside apenas nas suas pesquisas, mas sim em perceberem se o seu objetivo futuro será o de realizarem pesquisas de linguagens artísticas para o desenvolvimento de conceitos reflexivos intrínsecos a sua arte, ou de produzirem obras teatrais para o deleite dos espectadores. Se os objetivos estiverem ligados à segunda situação, esses jovens artistas já devem atentar para o fato de que o público em geral não tem a obrigação de compartilhar dos seus referenciais conceituais, estéticos e técnicos para serem tocados pelos espetáculos que lhes serão apresentados.

     Portanto, apesar da especificidade e necessidade de repertório estético que dialogue com a formação desses artistas, o espetáculo Liquidação, apresentado em 29 de junho, não ficou hermético em sua proposta, uma vez que todos ali presentes eram pessoas relacionadas às artes cênicas. Fica aqui uma dica para quem desejar prestigiar um espetáculo que se propõe a mostrar a busca estética de jovens artistas como se apresentadas em uma passarela, passeando rapidamente pela quebra de fronteiras entre as linguagens artísticas e o aprofundamento nos hibridismos entre elas.

Vagner Vargas
Ator – DRT: 6606

Crítico de Teatro

Dança Afro para Falar Sobre um Rio de Sangue


A história do município de Pelotas é sempre lembrada pelo período em que foi uma das cidades mais prósperas e ricas do Brasil, onde a indústria do charque progredia em escala geométrica. Para que toda essa evolução ocorresse, foi utilizada a mão de obra escrava, trazida da África.

Conforme publicado em 10/01/2009, em Terra de Andrea (<http://terradeandrea.blogspot.com.br/2009/01/rio-de-sangue-parte-i-o-comeo.html>), inicialmente, a Província de São Pedro era habitada pelos povos indígenas. Paulatinamente, a colonização europeia começou a povoar a região. No final do século XVII, inicia a instalação da primeira Charqueada onde, atualmente, está localizado o município de Pelotas. Para que a produção de charque atingisse escala industrial, era necessário que houvesse um tipo de habilidade e tecnologia que permitisse o abate de animais em larga escala de maneira rápida e eficiente.

Os povos indígenas não dominavam as técnicas para a matança de animais da maneira como os africanos realizavam. Devido a particularidades dos cultos religiosos africanos, os povos vindos da África conseguiam sacrificar o gado de maneira mais rápida e eficiente, sem causar maiores sofrimentos aos animais. Essa habilidade foi fundamental para o desenvolvimento da indústria do charque, ou seja, as charqueadas foram um sucesso econômico graças à tecnologia que a mão de obra africana trouxe para o desenvolvimento dessa cidade.

Durante certo tempo, ao longo do século XIX, os escravos chegaram a representar mais de 60% da população da cidade de Pelotas. Seus conhecimentos foram importantes não somente por viabilizarem o apogeu das charqueadas, mas também por serem responsáveis pela construção dos prédios e casarões da cidade, como por exemplo, os moldes das telhas que eram feitos de barro na perna dos escravos.

Toda essa riqueza atraiu para essa região muitos intelectuais e artistas, responsáveis pelos primeiros registros artístico históricos da região das charqueadas durante o século XIX (<http://terradeandrea.blogspot.com.br/2009/01/parte-ii-o-processo-de-produo.html>).  Os registros publicados por Andrea Terra, divididos em quatro partes, trazem breves relatos históricos e imagens sobre um período pouco falado sob o ponto de vista da importância da colonização africana para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul (<http://terradeandrea.blogspot.com.br/2009/01/parte-iii-revoluo.html>).

Para finalizar, o blog Terra de Andrea ainda nos aponta para uma reflexão do que foi feito com os escravos após a sua abolição e abertura das portas das senzalas. Será que eles realmente se tornaram livres? (<http://terradeandrea.blogspot.com.br/2009/01/parte-iv-opulncia-abolio-queda.html>).

Iniciei essa crítica fazendo uma breve introdução citando um texto que, traz todos os referenciais e elementos relacionados ao espetáculo Rio de Sangue, apresentado pela Cia de Dança Daniel Amaro, no dia 08 de junho de 2013, no Theatro Guarany. Embora os textos que eu referenciei anteriormente não estejam publicados em um livro, nem sejam de autoria de um historiador(a)com publicações reconhecidas em todo o país, tanto a autoria deles, quanto o seu conteúdo provém de uma fonte que agregam a si a propriedade de poder contar essa história através dos relatos intrínsecos de quem participou dessas histórias ao longo das suas gerações familiares.

    Notadamente, os textos publicados em Terra de Andrea podem servir de base para a construção do espetáculo Rio de Sangue. Porém, com uma peculiaridade que primordialmente os diferencia: no texto do blog, a autora enaltece, valoriza e fornece os devidos registros sobre a importância da colonização africana para o desenvolvimento do nosso estado, já o espetáculo de dança se fixa mais na alegoria das contribuições artísticas que a África trouxe ao Brasil.

     Apesar das contribuições da cultura africana serem enormes no que constitui o que hoje denominamos como identidade cultural brasileira, jamais podemos esquecer o alto preço que o povo vindo da África pagou ao ser retirado de sua terra e ser escravizado no Brasil. Os rios de sangue não podem ser amenizados, mascarados ou esquecidos! Isso não significa que devemos nos fixar nas brutalidades e sofrimentos que os povos africanos sofreram nas mãos dos nossos colonizadores. Muito pelo contrário, ao mantermos os rios de sangue sempre vivos em nossa memória, podemos não somente nos envergonhar desse passado histórico, como também refletirmos para que esse tipo de desrespeito à condição humana seja repetido nas gerações futuras.

     Nesse sentido, acredito que o espetáculo Rio de Sangue colocou essa situação de maneira muito superficial, parecida com a perspectiva que nossos colonizadores colocam nos livros de história, escritos pelas brancas mãos descendentes dos povos europeus. A perspectiva do enredo também me parecia com a “história que os charqueadores querem contar”, muito longe do desnudamento do que significou a brutalidade exercida pelos charqueadores sobre seus escravos.

     Senti falta de ver o rio de sangue. Obviamente que, o rio de sangue também está relacionado ao sangue das milhares de cabeças de gado, abatidas diariamente e que era despejado no Arroio Pelotas, o que forneceu esse nome ao local. Entretanto, o rio de sangue relacionado à condição humana, escravizada, dilacerada em seus direitos, dignidade e respeito jamais pode ser esquecido. Acredito que o espetáculo teria tocado de maneira mais eficiente à plateia presente, se tivesse mergulhado nas reais implicações do rio de sangue africano que foi derramado pelas mãos charqueadoras pelotenses.

     Mesmo com essa particularidade, a direção de Daniel Amaro soube administrar muito bem alguns quesitos de sua encenação. Gostaria de destacar os coros presentes em todo o espetáculo. Ao mesmo tempo em que nos passavam uma ideia de unidade de grupamento populacional, o que podemos relacionar com os povos escravizados e trazidos em grupos para o Brasil, também compunham uma unidade que imprimia sua identidade na maneira de contar a história do espetáculo em grupo.

     Alguns solos, pás-de-deux e pás-de-trois se destacavam dos demais em alguns momentos, explorando planos diferenciados para o desenho coreográfico, assim como também preenchiam e davam movimento ao espaço cênico como um todo. Embora as coreografias fossem bastante alegres, exaltando aspectos de felicidade, o impacto que Daniel desejava seria mais forte, caso ele “pesasse a mão” e não tivesse receio de aproximar sua dança dos sofrimentos a que os africanos foram submetidos em solo pelotense.

     Apesar de ressaltar aqui nesse texto a leveza do espetáculo Rio de Sangue, não posso deixar de render elogios a Daniel Amaro pela maneira como ele conseguiu inserir o samba em suas coreografias. Desconstruindo-o em alguns momentos, sem retirar-lhe as características que o constituem e também por mostrar que o samba pode ser uma maneira de se contar a história em um espetáculo de dança afro, sem cair nos estereótipos televisivos. O elenco de bailarinos, muito coesos, conseguia nos mostrar uma outra alternativa para pensarmos na força que o samba pode ter, enquanto coreografia de um espetáculo de dança contemporânea.

     O espetáculo trazia no seu elenco os seguintes interpretes e bailarinos: Anderson Martha, Carolina Paz, Carolina Rodrigues, Fernanda Chagas, Janaína Gutierres, Jaqueline Vigorito, Juliana Coelho, Karina Azevedo, Lisia Peixoto, Paula Farias, Thomas Marinho, Thuani Siveira. O figurino e Cenário ficaram por conta de Júlio Barbosa, fotografia do excelente Neco Tavares, edição de Imagens de Roger Terres, assistentes de direção Fabiana dos Santos e Victória Amaro. Além disso, a contra-regragem ficou por conta de Iver Folha e Douglas Passos. As coreografias foram criadas por Mano Amaro em parceria com o seu irmão Daniel Amaro que também assina a direção artística do espetáculo. A trilha Sonora continha obras de Djalma Corrêa, Cyro Baptista, Domínio Popular, Cantos Sagrados de Brasil e Cuba, Chico César, Afro Anatolian Tales, Baiafro e Dave Pike Set, Cleber Viera, Mestre João Pequeno, Las Brasa Afro e Serjola.

     Devido ao fato desse espetáculo ser tão ligado à história do povo africano trazido ao Brasil, acredito que a utilização de som mecânico não fosse a mais adequada para o contexto cultural. Em certo momento, observamos que um tamboreiro entra em cena e executa a trilha musical de parte das coreografias, mas apenas de parte delas. Acredito que o efeito da trilha musical seria mais forte e viria mais ao encontro da temática abordada, se todas as músicas fossem tocadas ao vivo por tamboreiros e cantores, como aqueles que encontramos nos terreiros de umbanda, batuque, candomblé e demais manifestações culturais e religiosas de matriz africana.

     Esse tipo de história precisa trazer a força de suas raízes, a força do tambor sendo tocado ao vivo, de todos os instrumentos que caracterizam as músicas de matriz africana que ainda sobrevivem nos cultos religiosos dessa origem. Inclusive, acredito que esse tipo de opção auxiliaria os bailarinos a mergulharem no universo de suas personagens durante o espetáculo.

     Alguns aspectos dos figurinos de Júlio Barbosa, me remeteram a uma coleção da stylist Doida da Espanha, que podemos ver nesse endereço: http://doidadaespanha.blogspot.com.br/. Nessa coleção, Doida da Espanha se inspirou nos movimentos da vegetação encontrada às margens do Canal São Gonçalo e nos movimentos das águas que circulam pelas Charqueadas. Além disso, essa coleção também tem um forte diálogo com a maneira como Andrea Terra conta a história dos africanos escravizados em Pelotas em seu blog. Apesar de fazer alguns anos que Doida da Espanha lançou essa coleção inspirada no tempo das Charqueadas, o movimento, a qualidade de execução e concepção desse tipo de proposta, se desenvolvido com essa perspectiva, também criaria um impacto visual bastante forte ao espetáculo Rio de Sangue. Refiro isso, pois senti a necessidade dos figurinos também enfatizarem o peso desse recorte histórico da nossa região.

     Infelizmente, apesar da grande qualidade criativa dos artistas envolvidos no espetáculo, não podemos deixar de ponderar o fato de que, mesmo com toda a criatividade, não se consegue executar um projeto artístico sem investimentos. Saliento esse fato, pois aqui, no trabalho dessa companhia de dança, já visualizamos um bom exemplo da necessidade dos nossos governos investirem mais em cultura. O espetáculo Rio de Sangue ilustra uma parte da nossa história e para que a qualidade do produto artístico oferecido aos nossos espectadores esteja à altura do talento de sua equipe e do que é de direito dos espectadores, os nossos governos precisariam investir mais em trabalhos artísticos desse tipo ao invés de alocarem grandes montantes de verbas para projetos que além da qualidade duvidosa, pouco agregam a nossa população.

     Outra situação que também me deixou bastante curioso foi o fato de haverem apenas dois bailarinos homens no espetáculo. Claro, compreendo totalmente o fato de haverem poucos homens que se dedicam, tem talento e força para se jogarem no mundo da dança. Mas, senti falta de um elenco masculino em maior número, sobretudo para contar esse tipo de história. Mas, infelizmente, essa é uma dura realidade que o diretor do espetáculo terá que enfrentar. Tomara que, ao longo do tempo, outros homens vejam esse espetáculo e despertem o seu interesse pela dança como um todo.

     Atualmente, a utilização de recursos tecnológicos tem sido uma constante em todas as artes cênicas. Não podemos negar o advento tecnológico, nem as suas possibilidades como meio de interação com a plateia e, também, como forma de agregar outras qualidades aos espetáculos. No entanto, a sua utilização deve ser muito bem ponderada para que não fique gratuita. Já comentei isso algumas vezes, pois, comumente, observo que alguns espetáculos de teatro usam as tecnologias mais para justificarem um apelo de verbas às fontes de fomento, do que à real necessidade desses recursos à coerência da encenação.

     Em face disso, considero que as projeções utilizadas durante as cenas do espetáculo deveriam ter um diálogo mais íntimo e eficiente com as cenas. Refiro isso, pois, em alguns momentos, observamos focos diferentes, ou seja, o que era projetado trazia consigo informações que ficavam ali, enquanto o que se fazia no palco continha outras informações que se encerravam em si. Apesar de estarem todas dentro de um mesmo contexto, as projeções e as cenas do palco não dialogavam entre si. Ao dizer isso, não quero passar a imagem rasa de que eu estaria me referindo ao fato das coreografias terem que fazer um jogral com as projeções. Longe disso! O que saliento é que a intensidade do “entre” elas deve ser explorada. Quando um espetáculo consegue atingir esse aspecto, o impacto visual além de ser muito eficiente, consegue envolver os espectadores no contexto da história que está sendo contada.

     Tendo em vista a rara quantidade de espetáculos de dança afro produzidos no Brasil, apesar da forte herança cultural africana em nosso país, considero que a Cia Daniel Amaro representa um importante papel na sobrevivência das origens culturais africanas nos palcos brasileiros. O que não podemos deixar é que a história de como os povos africanos foram trazidos ao Brasil, seja contada de maneira superficial, como os livros de história costumam fazer.

     Além disso, ao existirem espetáculos de dança afro nos palcos brasileiros, também estamos resistindo e mostrando a importância da cultura de matriz africana na constituição da nossa identidade nacional. Assim como o período de escravidão africana costuma ser atenuado pelos caucasianos contadores de histórias, as danças e outras manifestações culturais vindas da África também costumam ser estigmatizadas, estereotipadas, amordaçadas e mantidas longe dos palcos brasileiros, em detrimento das artes de origem europeia.

     Não podemos deixar que a supremacia caucasiana continue ditando o “seu lado da história” e “dificultando” a exposição das barbáries a que nossos ancestrais europeus submeteram os povos vindos da África. Nesse sentido, quando falarmos dos diversos rios de sangue do nosso país, não podemos ter medo de nos jogarmos neles, mergulharmos em suas dores e sofrimentos, para mostrarmos que, apesar de tudo isso, esse povo possibilitou que se construísse uma nação que hoje tanto divulga a sua constituição mestiça, formada pelos diversos matizes que aqui vieram, se estabeleceram e se misturaram, para formar o que hoje chamamos de povo brasileiro.

     Daniel Amaro e sua companhia desempenham um importante papel nesse contexto, na medida em que lutam para manter viva a dança de origem africana nos palcos brasileiros que tanto sofrem pressões embranquecedoras de estéticas e linguagens cênicas. Portanto, apesar de ter pontuado alguns aspectos do espetáculo Rio de Sangue, considero que ele representa um importante papel de resistência da cultura negra em Pelotas.

Vagner Vargas
Ator – DRT: 6606
Crítico de Teatro


Teatro Infantil com a Qualidade que as Crianças Merecem

     Não foram poucas as vezes que eu escrevi críticas sobre peças de teatro infantil em que as montagens ou se direcionavam mais aos adultos ou tratavam as crianças como seres desprovidos de inteligência. Todavia, quando assisto a um espetáculo que consegue levar teatro de boa qualidade ao público infantil, não me restrinjo de enaltecer e ressaltar todos os predicados positivos que podemos atribuir ao trabalho.

     O texto a seguir se refere à apresentação do espetáculo O Vendedor de Palavras, do Grupo Mototóti, de Porto Alegre, apresentado no dia 04 de junho de 2013, no Theatro Guarany, em Pelotas. A peça aborda o incentivo à leitura por meio de uma história repleta de aventuras e estímulos ao lirismo do universo existente em nossa imaginação. A maneira como os atores Fernanda Beppler e Carlos Alexandre concebem e desenvolvem o espetáculo traça um ótimo paralelo com o prazer despertado pela leitura. Sem caírem no jogral ou nas saídas óbvias, os atores vendem muito bem a ideia de que a leitura é algo prazeroso, divertido e que pode ser muito positiva em nossas vidas.
       
       A direção de Arlete Cunha coloca a sua mão com delicadeza e sabedoria, conseguindo fazer com que todo o espaço cênico seja utilizado de maneira eficiente ao longo do espetáculo. Além disso, sua direção dialoga profundamente com o entrosamento cênico dos atores, gerando um espetáculo de forte empatia com o público.

     As personagens criam situações e brincadeiras de maneira muito inteligente, jogando com o significado das palavras e despertando a curiosidade dos jovens espectadores em terem um conhecimento mais profundo sobre o mundo das letras. Além disso, a maneira como a dramaturgia do espetáculo, concebida por Rodrigo Monteiro, a partir da cônica de Fábio Revnol, consegue prender a atenção das crianças, despertando a sua curiosidade, levando o lúdico, estimulando a imaginação e fazendo-as refletir durante todo o desenrolar da história. No que se refere ao domínio e a utilização adequada das diversas técnicas teatrais, os atores merecem todos os elogios, pois conseguem fazer uso do seu vasto repertório de maneira muito coerente e extremamente apropriada ao público infantil.

     Os figurinos concebidos por Coca Serpa são funcionais, coesos na identidade visual do grupo, colaboram na construção da imagem das personagens e nas diversas situações que elas enfrentam. Mesmo desvelando aos espectadores que os figurinos não correspondem a uma ideia de ilusão de personagens que apenas poderiam viver no mundo dos palcos, os atores não inviabilizam que as crianças recebam essa informação e a signifiquem como possibilidade de comporem o seu universo imaginário. Essa situação é bastante interessante, pois a maneira como os atores trocam de figurinos em cena e mostram que pequenos elementos de cena podem colaborar para identificar um personagem, também mostra às crianças que elas podem se utilizar dessas ferramentas para criarem os personagens em suas brincadeiras diárias.

     O cenário do espetáculo, concebido por Carlos Alexandre e Zoé Degani, é compacto e extremamente funcional. Fica evidente que há um intenso trabalho do grupo em utilizar todos elementos de maneira criativa, estimulando o lúdico e mostrando que, com pequenas ações, um mesmo objeto pode se transformar em diversos cenários. Essa também é uma das características de estímulo ao lúdico muito bem desempenhadas pela equipe. Nenhum elemento de cena ou peça de cenário é posta ali em vão, nada é meramente ilustrativo, tudo faz parte de uma concepção orgânica onde o objetivo maior é contar uma história.

     Outro fator positivo do espetáculo é a trilha sonora executada ao vivo pelos próprios atores que tocam os instrumentos e cantam ao mesmo tempo. Música ao vivo sempre agrega uma qualidade maior ao espetáculo e provoca um encantamento mais eficiente em qualquer plateia. Os atores dominam muito bem as técnicas musicais tanto para os instrumentos, quanto para a voz. Esse é um aspecto muito importante, pois sempre defendo que, quando um ator deseja cantar ou tocar um instrumento em cena, ele deve, acima de tudo, dominar essas técnicas. Nesse caso, Fernanda e Carlos mais que dominam essas técnicas e conseguem trazer os espectadores para dentro da cena, enquanto desenvolvem a trilha musical do espetáculo.

     Além de tocarem as músicas ao vivo, os atores também manipulam bonecos e utilizam técnicas de máscaras cênicas em cena. A criação dos bonecos e máscaras ficou por conta da Cia Gente Falante, que soube executá-los com maestria. Fica evidente que os atores dominam muito bem as técnicas corporais e que sabem tirar o melhor proveito do seu repertório para construírem suas personagens com a verossimilhança que o público infantil merece. Apesar de identificar os diversos referenciais de técnicas corporais e de outras tantas técnicas teatrais presente nas atuações de Fernanda e Carlos, os atores conseguem utilizá-las de maneira muito eficiente e criativa para que não transpareçam como demonstrações de técnicas teatrais. Dessa maneira, os atores possibilitam que os espectadores se envolvam na narrativa, acreditem na verdade das personagens e mergulhem no imaginário da história.

     Também não posso deixar de destacar o forte entrosamento dos atores em cena, assim como o ritmo e time perfeito com que eles conduzem a história, jogando de maneira bastante eficiente, sem deixarem a energia cair em nenhum momento. Além disso, há outro aspecto que não se consegue aprender em nenhum livro, muito menos em nenhuma escola de teatro: o carisma. Os dois atores são extremamente carismáticos e as crianças se identificam muito com eles.

     Além da qualidade artística do Grupo Mototóti, vale ainda ressaltar o importante papel que eles cumprem não apenas em levarem uma peça de teatro para a apreciação do público infantil, mas também por estimularem o lúdico, o imaginário e, acima de tudo, o prazer e importância da leitura. Desse modo, finalizo esse texto re-re-re-re-enfatizando que o espetáculo O Vendedor de Palavras  funciona como um exemplo de peça de teatro que deveria ser ofertada frequentemente as nossas crianças.

Vagner Vargas
Ator – DRT: 6606
Crítico de Teatro