domingo, 3 de novembro de 2013

Dança Afro para Falar Sobre um Rio de Sangue


A história do município de Pelotas é sempre lembrada pelo período em que foi uma das cidades mais prósperas e ricas do Brasil, onde a indústria do charque progredia em escala geométrica. Para que toda essa evolução ocorresse, foi utilizada a mão de obra escrava, trazida da África.

Conforme publicado em 10/01/2009, em Terra de Andrea (<http://terradeandrea.blogspot.com.br/2009/01/rio-de-sangue-parte-i-o-comeo.html>), inicialmente, a Província de São Pedro era habitada pelos povos indígenas. Paulatinamente, a colonização europeia começou a povoar a região. No final do século XVII, inicia a instalação da primeira Charqueada onde, atualmente, está localizado o município de Pelotas. Para que a produção de charque atingisse escala industrial, era necessário que houvesse um tipo de habilidade e tecnologia que permitisse o abate de animais em larga escala de maneira rápida e eficiente.

Os povos indígenas não dominavam as técnicas para a matança de animais da maneira como os africanos realizavam. Devido a particularidades dos cultos religiosos africanos, os povos vindos da África conseguiam sacrificar o gado de maneira mais rápida e eficiente, sem causar maiores sofrimentos aos animais. Essa habilidade foi fundamental para o desenvolvimento da indústria do charque, ou seja, as charqueadas foram um sucesso econômico graças à tecnologia que a mão de obra africana trouxe para o desenvolvimento dessa cidade.

Durante certo tempo, ao longo do século XIX, os escravos chegaram a representar mais de 60% da população da cidade de Pelotas. Seus conhecimentos foram importantes não somente por viabilizarem o apogeu das charqueadas, mas também por serem responsáveis pela construção dos prédios e casarões da cidade, como por exemplo, os moldes das telhas que eram feitos de barro na perna dos escravos.

Toda essa riqueza atraiu para essa região muitos intelectuais e artistas, responsáveis pelos primeiros registros artístico históricos da região das charqueadas durante o século XIX (<http://terradeandrea.blogspot.com.br/2009/01/parte-ii-o-processo-de-produo.html>).  Os registros publicados por Andrea Terra, divididos em quatro partes, trazem breves relatos históricos e imagens sobre um período pouco falado sob o ponto de vista da importância da colonização africana para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul (<http://terradeandrea.blogspot.com.br/2009/01/parte-iii-revoluo.html>).

Para finalizar, o blog Terra de Andrea ainda nos aponta para uma reflexão do que foi feito com os escravos após a sua abolição e abertura das portas das senzalas. Será que eles realmente se tornaram livres? (<http://terradeandrea.blogspot.com.br/2009/01/parte-iv-opulncia-abolio-queda.html>).

Iniciei essa crítica fazendo uma breve introdução citando um texto que, traz todos os referenciais e elementos relacionados ao espetáculo Rio de Sangue, apresentado pela Cia de Dança Daniel Amaro, no dia 08 de junho de 2013, no Theatro Guarany. Embora os textos que eu referenciei anteriormente não estejam publicados em um livro, nem sejam de autoria de um historiador(a)com publicações reconhecidas em todo o país, tanto a autoria deles, quanto o seu conteúdo provém de uma fonte que agregam a si a propriedade de poder contar essa história através dos relatos intrínsecos de quem participou dessas histórias ao longo das suas gerações familiares.

    Notadamente, os textos publicados em Terra de Andrea podem servir de base para a construção do espetáculo Rio de Sangue. Porém, com uma peculiaridade que primordialmente os diferencia: no texto do blog, a autora enaltece, valoriza e fornece os devidos registros sobre a importância da colonização africana para o desenvolvimento do nosso estado, já o espetáculo de dança se fixa mais na alegoria das contribuições artísticas que a África trouxe ao Brasil.

     Apesar das contribuições da cultura africana serem enormes no que constitui o que hoje denominamos como identidade cultural brasileira, jamais podemos esquecer o alto preço que o povo vindo da África pagou ao ser retirado de sua terra e ser escravizado no Brasil. Os rios de sangue não podem ser amenizados, mascarados ou esquecidos! Isso não significa que devemos nos fixar nas brutalidades e sofrimentos que os povos africanos sofreram nas mãos dos nossos colonizadores. Muito pelo contrário, ao mantermos os rios de sangue sempre vivos em nossa memória, podemos não somente nos envergonhar desse passado histórico, como também refletirmos para que esse tipo de desrespeito à condição humana seja repetido nas gerações futuras.

     Nesse sentido, acredito que o espetáculo Rio de Sangue colocou essa situação de maneira muito superficial, parecida com a perspectiva que nossos colonizadores colocam nos livros de história, escritos pelas brancas mãos descendentes dos povos europeus. A perspectiva do enredo também me parecia com a “história que os charqueadores querem contar”, muito longe do desnudamento do que significou a brutalidade exercida pelos charqueadores sobre seus escravos.

     Senti falta de ver o rio de sangue. Obviamente que, o rio de sangue também está relacionado ao sangue das milhares de cabeças de gado, abatidas diariamente e que era despejado no Arroio Pelotas, o que forneceu esse nome ao local. Entretanto, o rio de sangue relacionado à condição humana, escravizada, dilacerada em seus direitos, dignidade e respeito jamais pode ser esquecido. Acredito que o espetáculo teria tocado de maneira mais eficiente à plateia presente, se tivesse mergulhado nas reais implicações do rio de sangue africano que foi derramado pelas mãos charqueadoras pelotenses.

     Mesmo com essa particularidade, a direção de Daniel Amaro soube administrar muito bem alguns quesitos de sua encenação. Gostaria de destacar os coros presentes em todo o espetáculo. Ao mesmo tempo em que nos passavam uma ideia de unidade de grupamento populacional, o que podemos relacionar com os povos escravizados e trazidos em grupos para o Brasil, também compunham uma unidade que imprimia sua identidade na maneira de contar a história do espetáculo em grupo.

     Alguns solos, pás-de-deux e pás-de-trois se destacavam dos demais em alguns momentos, explorando planos diferenciados para o desenho coreográfico, assim como também preenchiam e davam movimento ao espaço cênico como um todo. Embora as coreografias fossem bastante alegres, exaltando aspectos de felicidade, o impacto que Daniel desejava seria mais forte, caso ele “pesasse a mão” e não tivesse receio de aproximar sua dança dos sofrimentos a que os africanos foram submetidos em solo pelotense.

     Apesar de ressaltar aqui nesse texto a leveza do espetáculo Rio de Sangue, não posso deixar de render elogios a Daniel Amaro pela maneira como ele conseguiu inserir o samba em suas coreografias. Desconstruindo-o em alguns momentos, sem retirar-lhe as características que o constituem e também por mostrar que o samba pode ser uma maneira de se contar a história em um espetáculo de dança afro, sem cair nos estereótipos televisivos. O elenco de bailarinos, muito coesos, conseguia nos mostrar uma outra alternativa para pensarmos na força que o samba pode ter, enquanto coreografia de um espetáculo de dança contemporânea.

     O espetáculo trazia no seu elenco os seguintes interpretes e bailarinos: Anderson Martha, Carolina Paz, Carolina Rodrigues, Fernanda Chagas, Janaína Gutierres, Jaqueline Vigorito, Juliana Coelho, Karina Azevedo, Lisia Peixoto, Paula Farias, Thomas Marinho, Thuani Siveira. O figurino e Cenário ficaram por conta de Júlio Barbosa, fotografia do excelente Neco Tavares, edição de Imagens de Roger Terres, assistentes de direção Fabiana dos Santos e Victória Amaro. Além disso, a contra-regragem ficou por conta de Iver Folha e Douglas Passos. As coreografias foram criadas por Mano Amaro em parceria com o seu irmão Daniel Amaro que também assina a direção artística do espetáculo. A trilha Sonora continha obras de Djalma Corrêa, Cyro Baptista, Domínio Popular, Cantos Sagrados de Brasil e Cuba, Chico César, Afro Anatolian Tales, Baiafro e Dave Pike Set, Cleber Viera, Mestre João Pequeno, Las Brasa Afro e Serjola.

     Devido ao fato desse espetáculo ser tão ligado à história do povo africano trazido ao Brasil, acredito que a utilização de som mecânico não fosse a mais adequada para o contexto cultural. Em certo momento, observamos que um tamboreiro entra em cena e executa a trilha musical de parte das coreografias, mas apenas de parte delas. Acredito que o efeito da trilha musical seria mais forte e viria mais ao encontro da temática abordada, se todas as músicas fossem tocadas ao vivo por tamboreiros e cantores, como aqueles que encontramos nos terreiros de umbanda, batuque, candomblé e demais manifestações culturais e religiosas de matriz africana.

     Esse tipo de história precisa trazer a força de suas raízes, a força do tambor sendo tocado ao vivo, de todos os instrumentos que caracterizam as músicas de matriz africana que ainda sobrevivem nos cultos religiosos dessa origem. Inclusive, acredito que esse tipo de opção auxiliaria os bailarinos a mergulharem no universo de suas personagens durante o espetáculo.

     Alguns aspectos dos figurinos de Júlio Barbosa, me remeteram a uma coleção da stylist Doida da Espanha, que podemos ver nesse endereço: http://doidadaespanha.blogspot.com.br/. Nessa coleção, Doida da Espanha se inspirou nos movimentos da vegetação encontrada às margens do Canal São Gonçalo e nos movimentos das águas que circulam pelas Charqueadas. Além disso, essa coleção também tem um forte diálogo com a maneira como Andrea Terra conta a história dos africanos escravizados em Pelotas em seu blog. Apesar de fazer alguns anos que Doida da Espanha lançou essa coleção inspirada no tempo das Charqueadas, o movimento, a qualidade de execução e concepção desse tipo de proposta, se desenvolvido com essa perspectiva, também criaria um impacto visual bastante forte ao espetáculo Rio de Sangue. Refiro isso, pois senti a necessidade dos figurinos também enfatizarem o peso desse recorte histórico da nossa região.

     Infelizmente, apesar da grande qualidade criativa dos artistas envolvidos no espetáculo, não podemos deixar de ponderar o fato de que, mesmo com toda a criatividade, não se consegue executar um projeto artístico sem investimentos. Saliento esse fato, pois aqui, no trabalho dessa companhia de dança, já visualizamos um bom exemplo da necessidade dos nossos governos investirem mais em cultura. O espetáculo Rio de Sangue ilustra uma parte da nossa história e para que a qualidade do produto artístico oferecido aos nossos espectadores esteja à altura do talento de sua equipe e do que é de direito dos espectadores, os nossos governos precisariam investir mais em trabalhos artísticos desse tipo ao invés de alocarem grandes montantes de verbas para projetos que além da qualidade duvidosa, pouco agregam a nossa população.

     Outra situação que também me deixou bastante curioso foi o fato de haverem apenas dois bailarinos homens no espetáculo. Claro, compreendo totalmente o fato de haverem poucos homens que se dedicam, tem talento e força para se jogarem no mundo da dança. Mas, senti falta de um elenco masculino em maior número, sobretudo para contar esse tipo de história. Mas, infelizmente, essa é uma dura realidade que o diretor do espetáculo terá que enfrentar. Tomara que, ao longo do tempo, outros homens vejam esse espetáculo e despertem o seu interesse pela dança como um todo.

     Atualmente, a utilização de recursos tecnológicos tem sido uma constante em todas as artes cênicas. Não podemos negar o advento tecnológico, nem as suas possibilidades como meio de interação com a plateia e, também, como forma de agregar outras qualidades aos espetáculos. No entanto, a sua utilização deve ser muito bem ponderada para que não fique gratuita. Já comentei isso algumas vezes, pois, comumente, observo que alguns espetáculos de teatro usam as tecnologias mais para justificarem um apelo de verbas às fontes de fomento, do que à real necessidade desses recursos à coerência da encenação.

     Em face disso, considero que as projeções utilizadas durante as cenas do espetáculo deveriam ter um diálogo mais íntimo e eficiente com as cenas. Refiro isso, pois, em alguns momentos, observamos focos diferentes, ou seja, o que era projetado trazia consigo informações que ficavam ali, enquanto o que se fazia no palco continha outras informações que se encerravam em si. Apesar de estarem todas dentro de um mesmo contexto, as projeções e as cenas do palco não dialogavam entre si. Ao dizer isso, não quero passar a imagem rasa de que eu estaria me referindo ao fato das coreografias terem que fazer um jogral com as projeções. Longe disso! O que saliento é que a intensidade do “entre” elas deve ser explorada. Quando um espetáculo consegue atingir esse aspecto, o impacto visual além de ser muito eficiente, consegue envolver os espectadores no contexto da história que está sendo contada.

     Tendo em vista a rara quantidade de espetáculos de dança afro produzidos no Brasil, apesar da forte herança cultural africana em nosso país, considero que a Cia Daniel Amaro representa um importante papel na sobrevivência das origens culturais africanas nos palcos brasileiros. O que não podemos deixar é que a história de como os povos africanos foram trazidos ao Brasil, seja contada de maneira superficial, como os livros de história costumam fazer.

     Além disso, ao existirem espetáculos de dança afro nos palcos brasileiros, também estamos resistindo e mostrando a importância da cultura de matriz africana na constituição da nossa identidade nacional. Assim como o período de escravidão africana costuma ser atenuado pelos caucasianos contadores de histórias, as danças e outras manifestações culturais vindas da África também costumam ser estigmatizadas, estereotipadas, amordaçadas e mantidas longe dos palcos brasileiros, em detrimento das artes de origem europeia.

     Não podemos deixar que a supremacia caucasiana continue ditando o “seu lado da história” e “dificultando” a exposição das barbáries a que nossos ancestrais europeus submeteram os povos vindos da África. Nesse sentido, quando falarmos dos diversos rios de sangue do nosso país, não podemos ter medo de nos jogarmos neles, mergulharmos em suas dores e sofrimentos, para mostrarmos que, apesar de tudo isso, esse povo possibilitou que se construísse uma nação que hoje tanto divulga a sua constituição mestiça, formada pelos diversos matizes que aqui vieram, se estabeleceram e se misturaram, para formar o que hoje chamamos de povo brasileiro.

     Daniel Amaro e sua companhia desempenham um importante papel nesse contexto, na medida em que lutam para manter viva a dança de origem africana nos palcos brasileiros que tanto sofrem pressões embranquecedoras de estéticas e linguagens cênicas. Portanto, apesar de ter pontuado alguns aspectos do espetáculo Rio de Sangue, considero que ele representa um importante papel de resistência da cultura negra em Pelotas.

Vagner Vargas
Ator – DRT: 6606
Crítico de Teatro


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